Krishnanda
© Carol Shimeji
Música

Krishnanda, uma Obra-Prima Renascida

Disco obrigatório para quem realmente é apaixonado por música, trabalho “perdido” de Pedro Santos se tornou um clássico global
Escrito por Kassin
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Krishnanda 50 anos

Talvez você nunca tenha ouvido falar do álbum Krishnanda, concebido e gravado por Pedro Santos. Talvez você sequer tenha ouvido falar de Pedro Santos, ou de Pedro Sorongo, ou de Pedro da Lua, como o percussionista e ocasional cantor também era chamado. Lançado em 1968, o disco ficou por anos perdido em sebos, mas é hoje um dos mais cultuados por colecionadores do mundo inteiro. Tendo em vista a grandeza da música produzida aqui, esse reconhecimento não é pouca coisa. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que só quem botasse as mãos em uma rara cópia em vinil poderia ouvir a beleza das criações de Pedro, um músico cuja inventividade e espírito de produção artística não conheciam limites. Como define Ed Motta: “A capa, o nome, a textura dos arranjos: tudo é especial e progressista em Krishnanda”.
Para mim, o culto começou no meio dos anos 1990. A primeira vez que ouvi o LP foi com meu amigo inglês Gary Corben, com quem dividia um apartamento. Estávamos juntos quando ele comprou um lote de LPs usados a R$ 1 cada. Quando pusemos Krishnanda na vitrola, foi um susto: nada que havíamos ouvido até então soava como aquilo. Naquele momento, não sabíamos que muitos dos instrumentos que estávamos ouvindo tinham sido inventados e construídos pelo próprio Pedro. Não havia ficha técnica. O único indicativo de alguém que conhecíamos era o crédito de produção de Hélcio Milito, do Tamba Trio. José Pacheco Lins, que fez os arranjos, assinou com o pseudônimo Jopa Lins, por vergonha das letras e do resultado como um todo.
Pedro Santos

Pedro Santos

© Acervo pessoal Lys Araújo

Gary vivia entre Londres e Rio de Janeiro. Comprava discos nacionais para vender na capital britânica, alimentando no exterior um culto a trabalhos aos quais os próprios brasileiros não prestavam atenção. No início dos anos 2000, ele fundou o selo Whatmusic, que relançava raridades em vinil. “De volta a Londres, gravei cópias do disco em CD-R e dei para todos os meus amigos. Fiquei tão obcecado que fiz uma camiseta com a capa e a contracapa”, Gary relembra. “Ao longo dos anos, outras cópias começaram a aparecer e, com o surgimento da internet, a lenda cresceu.”
Passei a vida em estúdios de gravação e ainda assim me perguntava como Pedro Santos, que tocou ele próprio muito do que se ouve em Krishnanda, tinha conseguido gravar algo tão extraordinário em apenas três canais, a tecnologia existente na época. Não é só a complexidade técnica que espanta. O resultado sonoro dos instrumentos inventados por ele se assemelhava à música eletrônica em alguns momentos, quando ainda não era possível produzir tais sons eletronicamente. O disco estabelecia uma ideia de percussão brasileira não apresentada até então: futurista, original, revolucionária. E os metais pareciam prever o afrobeat anos antes de Fela Kuti.
Krishnanda

Krishnanda

© Reprodução

Ainda que seu aprendizado tenha se dado em um universo mais formal, como percussionista de orquestras e da Rádio Nacional, Pedro criou instrumentos não convencionais. Deu vida a bambus afinados e utilizou brinquedos para fazer música. Mas, antes disso, serviu na Segunda Guerra e voltou transtornado do campo de batalha. Perdeu um filho, adotou a ioga e a macrobiótica e aplicou todas essas experiências largamente nas letras e na capa de Krishnanda. Talvez essas visões arrojadas tenham sido um dos motivos da obscuridade, já que tais conceitos não eram compreendidos no Brasil dominado pela ditadura militar.
Em 2012, muitos anos depois de ter descoberto Krishnanda, único disco solo do artista (que também trabalhou com gente como Sebastião Tapajós, Elza Soares, Maria Bethânia e Baden Powell), fui convidado pelo produtor João Augusto a escrever um texto de apresentação para o relançamento em LP pela Polysom. Na época, disse a ele que a única maneira de fazer o texto seria a partir de uma entrevista com Hélcio Milito, testemunha de como nasceram aquelas canções e um dos poucos que poderiam revelar os mistérios que as envolviam, já que Pedro havia morrido quase 20 anos antes, em 1993.
Eu sabia que Hélcio morava nos Estados Unidos. Escrevi para ele pelo Facebook e, por uma dessas coisas inexplicáveis do destino, ele me respondeu em minutos, dizendo que estava no Brasil, mas que partiria de volta para casa em um voo naquele mesmo dia. Solícito, perguntou se poderíamos fazer a entrevista durante o almoço.
Quando assinou contrato para assumir a direção artística da gravadora CBS, nos anos 1960, Hélcio incluiu uma cláusula garantindo que poderia produzir discos que tivessem valor estritamente artístico, sem nenhum direcionamento comercial. Discos que fossem apostas. Krishnanda é um desses trabalhos. Nos anos em que esteve na CBS, também produziu outros dois dos mais importantes álbuns feitos aqui: o clássico lançado pela Orquestra Afro-Brasileira em 1968, homônimo, e O Som Psicodélico de L.C.V. (1968), de Luiz Carlos Vinhas. Que imenso serviço Hélcio prestou à música brasileira. Além de músico e produtor, ele também foi um inventor de instrumentos, caso da tamba, que deu nome ao Tamba Trio.
Já na primeira reunião com Hélcio, Pedro chegou com todo o conceito pronto, inclusive o extraordinário desenho da capa. Hélcio deu total liberdade ao instrumentista: o deixava sozinho com o engenheiro de som, visitando o estúdio apenas no fim do dia. Nas palavras do produtor, “às vezes a melhor maneira de produzir um disco é não estar”. Hélcio morreria cerca de dois anos depois da nossa conversa.
Atualmente, Lys Araújo, filha de Pedro, cuida do acervo e da memória do pai, incluindo o blog pedrosorongo.blogspot.com e a página facebook.com/sorongopedro. O álbum recebe homenagens em forma de regravações, shows-tributo e relançamentos, inclusive um recente pelo selo inglês Mr. Bongo. Fico muito feliz de ver cada vez mais gente conhecendo esse disco, que por anos foi um segredo guardado por poucos. O lendário DJ europeu Gilles Peterson, um dos responsáveis por espalhar o som do álbum pelo mundo, dá seu testemunho: “A capa me tentou, a música me iluminou. Hélcio Milito foi um gênio ao encontrar plataforma para essa história de amor rebelde de ritmo e progresso. Foi uma loucura para a época, mas algumas das ideias mais malucas só recebem a devida apreciação que merecem anos depois de realizadas”.
Krishnanda é uma obra-prima que, 50 anos depois de criada, segue inigualável.
*Alexandre Kassin é músico e produtor, tendo trabalhado em discos solo e com +2’s e Orquestra Imperial. Produziu álbuns de Los Hermanos, Vanessa da Mata, Marcelo Jeneci, Nação Zumbi e Erasmo Carlos, entre outros.
O Red Bull Music Festival São Paulo celebrou na sexta-feira, dia 30 de novembro, os 50 anos do clássico disco Krishnanda. O show, recriado por músicos como Lúcio Maia, Mauricio Fleury e BNegão, resgatou toda essa história, mostrando o álbum faixa a faixa e revelando o talento de um dos maiores mestres de percussão do Brasil, que desenvolveu um estilo de música próprio. Confira na galeria os melhores momentos da noite.