Don L
© Autumn Sonnichsen
Música

Faixa a faixa: Don L "Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3"

O rapper cearense conta as histórias por trás de cada faixa de seu novo EP
Escrito por Luana Dornelas
20 min de leituraPublicado em
O rapper cearense Don L, que em 2015 foi um dos convidados da ocupação PULSO, que rolou no Red Bull Station, lançou recentemente seu novo EP, intitulado "Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3", em referência ao diretor de cinema Karim Aïnouz. O disco, lançado quatro anos após sua última mixtape, foi produzido pelo Don em parceria com Deryck Cabrera e co-produzido pelo Leo Justi, DJ Caíque, Sants e Luiz Café.
Este é o primeiro disco da trilogia RPA e conta com muitas participações, entre elas Lay, Diomédes Chinaski e Terra Preta. Neste trabalho Don L expressa seu inconformismo com o mundo e reflete de certa forma o momento sócio-político caótico do Brasil.
Convidamos o Don para contar um pouco das histórias por trás de cada produção do álbum. Dá o play e descubra os segredos por trás de cada faixa.
1 - Eu Não te Amo
Quando o Diomedes me mandou a música “Sulicídio”, um dia antes de ser lançada, essa que seria a intro do meu disco já tinha a voz dele gravada. O Deryck me mandou a primeira parte do beat, eu escrevi até ali e depois chamei ele pra gente criar junto a parte de transição, e a parte que o Chinaski vem rimando. Naquele tempo eu já achava o Chinaski um dos melhores rappers brasileiros, com um background parecido com o meu, ele sendo de Recife, cidade parecida com Fortaleza, de onde eu vim. Ele era a pessoa perfeita por vários motivos. Eu queria apresentar alguém novo, e do Nordeste, pra cena de rap brazuca, logo na intro. Alguém que fosse uma continuidade do que a gente construiu com o Costa a Costa, e que ao mesmo tempo representasse um retorno ao velho Don L lá em Fortaleza, que é o Don L do RPA1, o que dá esse conceito de loop que tá presente nesse trampo todo. Na transição eu tô falando disso, do antigo Don L ali naquelas ruas que inspiraram minhas primeiras rimas, já me sentindo deslocado, tentando criar uma rota de fuga e até uma realidade paralela pra prisão das circunstâncias. Faço esse paralelo à minha situação atual em São Paulo, que é sobre o que eu começo a música falando, porque é em essência a mesma coisa, e aí o Diomedes entra falando dele, que tá vivendo a versão 2017 do meu 2007, nessa desconstrução e reconstrução constante da noção de tempo e espaço que é o RPA em geral, preparando pra próxima faixa.
2 - Fazia Sentido
Aqui eu continuo de onde o Diomedes parou em 2017, só que em 2007 ou antes disso, quando eu só tinha um gravadorzinho minicassete onde eu registrava meu sentimento em forma de rimas, sozinho num quarto sem reboco numa ocupação de favela batizada de Marrocos, em frente à um conjunto habitacional conhecido como São Pedro. Nessa ideia de filme, imagino o Diomedes rimando numa rua vizinha só que em Recife, numa atmosfera como a dos sonhos onde esse tipo de coisa acontece, e a câmera correndo um ou dois becos pra chegar em mim, em 2007 em Fortaleza, como se fosse ao mesmo tempo. Sou eu e minhas rimas contra o mundo num quarto sem reboco, me exercitando a cada dia até me sentir como se eu tivesse um exército comigo, como uma rebelião de escravos se preparando pra tomar a liberdade à força, e aí vem o Terra Preta nos coros do refrão e depois no final, representando isso. Isso tudo tá implícito ali no primeiro verso e refrão, e aí já volta pra 2017 de novo, nesse contexto atual bagunçado da música e o rap, traçando esse paralelo temporal, numa de pôr ordem no caos e cada coisa em seu lugar, me situando dentro desse contexto. O beat do Deryck tem esse feeling de luta, meio afro-beat, e a mix do Luiz Café trouxe esse contraponto ali no refrão: na minha parte, é uma voz com reflexos de quarto pequeno, praticamente sem cômodos, em contraponto à várias vozes do Terra ali como um coro gigante de cem pessoas a céu aberto. Eu precisava ainda de uma voz feminina em alguns backings do final, e aí tive a sorte de poder contar com a linda voz da Srta. Paola.
3 - Aquela Fé
Agora cê pode imaginar que eu fiz flexões até cair de cansaço naquele quartinho da faixa anterior, e quando a câmera dá uma volta de 360 graus pelo cenário e volta pra mim: eu tô sentado no chão da sala de um apartamento no décimo oitavo andar do centro de São Paulo, com vista pra selva de concreto, frenética. Aliás, aquele barraco da faixa anterior também tinha uma vista pra uma outra selva de concreto, só que em frente ao mar, mais ou menos da mesma altura, no topo do morro. Agora as paredes têm reboco e eu tô num cenário de fim de festa, sozinho de novo, em meio às garrafas vazias e bagunça da noite anterior. Sentindo o loop e o peso do cansaço, eu percebo que a diferença principal daquele quarto de favela pra esse apartamento não tá no reboco da parede, nem na vista, nem na cidade, nem em nada em minha volta, mas num tipo de fé ingênua que aquele "velho eu" tinha, e percebendo que perdi em algum ponto do caminho, eu sinto a necessidade dela de volta. Esse é o cenário que eu via quando ouvi pela primeira vez o beat do DJ Caique, que é a instrumental da primeira parte dessa música, no meio de uma dezena que ele tinha me mandado, e eu escutava meio desmotivado, entre uma aba e outra de mensagens de fãs nas redes sociais me falando da relação deles com a minha música. Eu já tava escrevendo uma resposta pra uma dessas mensagens, dizendo pro moleque não seguir meus passos, que não tinha dado muito certo, até que eu percebi que na verdade ele é que tinha o que eu precisava, ele tinha aquela fé que eu tinha perdido, e aí eu só fechei a aba de mensagens e comecei a escrever a música no Evernote. Quando terminei essa parte, pensei que o beat tinha que dar uma virada, a ideia tinha que dar uma virada, minha vida tinha que dar uma virada. Eu tinha que trazer o Constantino nesse som. Eu sempre chamei o Gallo de Constantino [Constantine, o Hellblazer], pela intensidade que ele lida com anjos e demônios na vida dele, e por ser um cara que tem uma fé que sempre me intrigou, que parece que persegue ele e não o contrário. Exorcista de favela. É o cara que o irmão pecador quer trocar uma ideia quando o assunto é muito denso pro pastor. Então a gente faz outro retorno a Fortaleza, na pele de um cara que tava comigo lá em 2007, e que em 2017 tá trampando no resgate de almas, literalmente, nas ruas de Fortaleza, ensinando redução de danos pra viciados em pedra. Quando eu ouvi essa parte que ele diz no verso: “dividindo um café com um mendigo em trapos que canta versos que vivi noutro momento”, reconheci que ele falava do Nathan, moleque que era o fã número 1 do Costa a Costa na quebrada, que em 2016, por aí, eu soube que tava em situação de rua, e nesse dia que o Gallo trombou ele, me mandou um áudio de WhatsApp, cantando um verso nosso daquela época e lembrando um dia que colou num backstage de show nosso, no auge da nossa fé ingênua. Aí tive que chamar o Deryck de novo, e a gente fez aqui em casa a parte final, que eu escrevi enquanto ele criava a linha de piano e já fui gravando a guia, que o Terra Preta depois também ajudou dando um reforço onde minha voz não chega. Eu tinha gravado uma guia do refrão e acabei usando alguns dos meus backings, mas precisava de um cara que conseguisse chegar naquele falsete exatamente como eu queria, com alma, técnica, e a voz ideal. O nome dele é Eddu Ferreira.
4 - Cocaína
Esse é um ponto de virada no RPA3. Eu tinha falado sobre a adrenalina como anestésico, lá na intro, me referindo àquele momento da minha vida, de dez anos atrás, quando eu tentava romantizar o ódio pra encontrar o amor. Aquele era um ponto de virada, e esse é um novo, que se desenvolve nas próximas quatro faixas. É um mergulho no caos. Depois da desilusão, a dose de adrenalina. Se é isso que tá tendo, deixa eu sentir no máximo. É sacar muito bem o que tá acontecendo e o grau de inviabilidade de qualquer mudança substancial a curto prazo, e se adaptar a isso, se camuflar no caos e criar uma realidade paralela, e tentar ser feliz pra hoje dentro de uma matrix. Quando você sofre um acidente brusco, seu corpo descarrega uma dose de adrenalina muito alta e você não sente a dor, e então você tem a chance de se adaptar à ideia de ter levado um tiro, por exemplo, ou ter perdido um braço. Tão importante quanto a realidade é a forma que cê lida com ela, pra criar ilusões até o ponto em que elas se tornam insustentáveis e você precisa destruí-las por completo pra reconstruir novas. Essa faixa é o mergulho, o pico de adrenalina, o foda-se essa porra toda. Foi também a faixa que me deu mais trabalho pra ficar perto de como eu queria. Eu peguei um beat do Goss, e escrevi ela em dois dias. Depois comecei a mudar umas coisas, queria umas viradas de bateria de verdade, e queria uma guitarra. Levei no estúdio de um amigo, o Renato Parmi, que colocou essa guitarrinha rítmica do refrão. Mas eu precisava de uma guitarra mais rock’n’roll, na música toda, dançando comigo no caos. Foi aí que eu chamei um cara de quem sou fã, e há muitos anos esperava uma oportunidade de colaborar numa música, o melhor guitarrista do mundo, meu conterrâneo Fernando Catatau. Quando esse maluco me mandou o que ele tinha feito, era uma parada tão genial que eu precisava adaptar todo o resto. Tentei gravar uma bateria acústica, e um Wurlitzer, quando eu tava participando do projeto Pulso da Red Bull, onde tive acesso a uns músicos que eu não conhecia e ao estúdio. Acabei usando só as viradas de bateria, e o resto serviria depois pro interlúdio que segue na próxima faixa. Eu ainda queria umas 808 nos versos, que criei com o Cesinha [CESRV] onde gravei as vozes, depois que já tinha todo o resto e retimbrei em casa. Eu precisava de vozes no refrão e foi aí que o Eddu Ferreira chegou outra vez fodamente na missão.
5 - Cocainterlúdio
Eu queria um interlúdio instrumental que representasse o efeito prolongado ainda daquele mergulho no caos. A imagem era essa de ultrapassar correndo as Ferraris do engarrafamento. Cocaína. Eu tinha aquela bateria e teclados que eu não tinha usado na faixa anterior, e queria uma sessão de metais com um solo de sax. Foi a minha oportunidade pra chamar outro zika. Eu só dei a idéia do feeling que eu queria, o tipo de jazz fritação de mente que eu queria nessa faixa, e mandei a base que eu tinha editado, do material que eu tinha gravado na Red Bull, pro Thiago França, melhor saxofonista do mundo. Ele criou a sessão de sopros inteira e o solo, e gravou tudo em take 1, no estúdio C4. Eu tinha ligado o Luiz Lopes, dono do estúdio, do tipo de som que eu queria, e perguntado quanto seria porque eu não sabia quando ia poder pagar. É um estúdio de ponta o do Luiz, e eu queria os metais do França no melhor esquema. Ele me falou que tinha uns mics de fita lá, e um preamp boladão pra esse tipo de som. A bateria e o teclado não tinham exatamente o som que eu queria, porque foram gravadas mais de improviso no projeto Pulso da Red Bull, e faltava um baixo, que pedi pro Gustavo Portela, de Fortal, e o Rodrigo Coei, de Recife, gravarem a distância mesmo e me mandarem. O talento final ficou por conta do Luiz Café que montou tudo comigo lá em Niterói e mixou, fazendo essa parada toda gravada em picos diferentes funcionarem juntas. Na real, o disco inteiro foi gravado assim, onde dava e do jeito que dava, até chegar no feeling aproximado do que eu queria, sempre contando com o Café pra consertar na medida do possível as falhas técnicas, e ainda fazer uma mix criativa em cima disso. Passei quase um mês em Niterói pra gente conseguir chegar num resultado que satisfizesse os dois.
6 - Mexe pra Cam
Seguinte à minha imersão no caos, a criação de uma realidade paralela, particular. Dentro dela um lugar seguro, um refúgio. Pequenos vícios. Um amor. Um caso. Algo de bom pra ser lembrado. “Strange Days [Estranhos Prazers]” é um dos meus filmes preferidos. Muitas vezes eu me senti como o Lenny nesse filme; traficando experiências em mídia digital, seguindo cegamente uma missão antiga que desembocou em caminhos totalmente diferentes do imaginado, vivendo de uma profissão perigosa, com o status de alguém que tá fazendo dinheiro, mas na real tá ralando pra pagar as contas. Hoje em dia quase todas as pessoas têm celular com câmera, e a maioria usa isso de uma forma muito mais doida do que a "droga do futuro" imaginada nesse filme dos anos 90. As pessoas simulam experiências, encarnam personagens e estilos de vida maquiados, e vendem isso, compram isso, consomem e são consumidos por isso. Tudo é um reality show e ao mesmo tempo nada é muito real. Um dia desses circulou em grupos de WhatsApp um vídeo de uma molecadinha, da minha cidade, alguns com cara de 16 anos, se filmando dentro de um carro cheio de armas, indo matar outros moleques, com sorriso na cara e expressão de quem tá dentro de um jogo de videogame. Eles não estavam só indo matar alguém. Eles estavam indo se filmar matando alguém. E isso é construção de status dentro do reality show de favela atual da molecadinha de facções criminosas, como é pro casal ir à praia produzir uma foto se beijando de frente pro mar. Nessa música eu quis fazer o contrário. Falar de um momento íntimo, de um filme particular, e também inverter um pouco esse lance machista do risco dos nudes e revenge porn ser uma coisa negativa pra imagem da mina exposta, quando na real otário é quem quebrou o contrato íntimo e publicou. É um som que tem esse feeling de felicidade passageira, de sexo quente, da possibilidade desse pôr do sol ser o último. É sobre sexo e solidão ao mesmo tempo. Porque o vídeo é repetível, a vida não. O momento é único. Eu tinha acabado de conhecer a Lay nessa época e já sabia que ela seria uma das maiores artistas do rap brasileiro, prestes a lançar um disco histórico, que foi o 129129 dela. Uma mina muito de verdade, que tem uma busca pela substância também através da estética e imagem, como afirmação e arte mesmo, muito além do superficial. O beat é do Sants, moleque bom da eletrônica, um dos meus beatmakers favoritos. Ele me mandou uma prévia do beat pronto, eu gravei a guia inteira, e aí um certo dia o hd dele quebrou e ele perdeu as pistas originais do beat. A gente teve que fazer de novo junto, porque como ele cria os próprios timbres dele, alguns não ficavam iguais, e mesmo que fosse impossível ficar igual, eu queria o mesmo feeling. No final isso foi positivo porque foi no meio dessa session de recriação do beat, na minha casa, que ele criou meio de freestyle o beat da próxima faixa, Ferramentas.
7 - Ferramentas
Ouvindo esse beat olhando a vista da minha varanda, eu sentia um sentimento recorrente e que não é dono de uma palavra no dicionário. Talvez metanostalgia, não no sentido de uma nostalgia dentro de uma nostalgia, mas no sentido de uma nostalgia fora do tempo, uma saudade do que eu poderia estar vivendo agora. Não é uma frustração, simplesmente, porque envolve um sentimento de prazer e um gosto de champanhe na boca, mas incompleto, faltando algo importante, que eu já tive quando faltava algo, que eu tenho agora. Eu tinha fechado com um amigo de colar na quebrada dele, Favela do Colombo. Gato Preto, baiano de Feira de Santana, foi o cara que lá atrás em 2007, quando eu tinha dado uma bagunçada na cena do rap com a mixtape do Costa a Costa, e o clima tava tenso, me ligou e disse que eu podia colar em São Paulo quando eu quisesse que ninguém ia mexer, que ele garantia com o que fosse preciso. Parceiro de fé e ferramentas. Mais ou menos um ano depois ele foi parar num presídio de segurança máxima onde passou oito anos, e a gente perdeu um pouco o contato, a não ser pelas notícias que um amigo nosso em comum, Duguetto, me passava sobre ele, que sempre mandava um salve. Quando voltou pra rua, eu tava em São Paulo, ele ficava sempre entre a favela e algum lugar perto do centro onde eu tava, e a gente ficou mais próximo, se vendo frequentemente, trocando ideias. Essa música eu escrevi depois de uma dessas nossas conversas, sobre nossa caminhada, sobre os caminhos do rap, sobre nossas ideias de vida, nossa fé, nossas ferramentas, e vários planos que foram interrompidos alguns meses antes desse disco sair, quando infelizmente o irmão foi assassinado. A voz no final da música é um áudio de WhatsApp dele, nesse mesmo dia. Além do beat do Sants, tem uns synths adicionais meus e do Deryck, que fez produção e pós-produção quase no disco todo comigo, além de tocar essa guitarra do final num teclado de computador, usando um plugin de baixo nas notas agudas. Não é o ideal, mas a gente tá falando de ferramentas, e pra isso era a que tava tendo no dia. Teve o feeling, e eu sabia que podia contar com o Café também.
8 - Se Num For Demais
Então a gente chega no auge do RPA3, que é o fundo do poço no momento da subida, depois do mergulho, da imersão completa, que é a Cocaína e o interlúdio, o refúgio de Mexe pra Cam, e a recaída metanosgálgica em Ferramentas. Agora você aceitou a queda, o rolê no inferno, e falou ok, era só isso memo? Pode ficar com o troco. E parte pra uma nova reconstrução, uma redescoberta de si mesmo. É quando você pode ver a parte positiva da destruição, que é gerar espaço, matar coisas em você pra permitir outras nascerem. Talvez os cinéfilos estranhem as referências que cito no decorrer do disco, e outras que cito aqui nesse faixa a faixa, pra quem tá falando de um disco que tem no título o nome de um diretor que pertence à outro circuito, mas é aí que tá o lance. Logo ali na intro eu cito o personagem Escobar, e o Tony Montana, bandidos-heróis que muitas vezes você vai encontrar numa foto de capa de Facebook de alguém que, ao mesmo tempo, defende a maioridade penal de adolescentes, e vota em políticos de campanhas policiais. Porque eles não são reais. Porque você não sente nenhuma dor quando assiste à esses filmes ou séries. Inclusive eles estão na mesma categoria de personagens apesar de um ter existido de fato e o outro ser totalmente fictício. No decorrer do disco eu cito outros, a maioria holiudianos, até chegar nesse ponto, nessa faixa. Quando eu percebo que cheguei no fundo do poço e preciso terminar de destruir o que sobrou pra uma reconstrução completa, eu digo que minha vida é um loop do Fight Club, mas dirigido por Aïnouz. É uma quebra de paradigma. Porque é muito real. Porque o Aïnouz é daqueles diretores que faz você sentir inclusive o tédio, o vazio. Não apenas entender, tipo, ah ok, aqui o personagem sentiu um vazio, e agora a gente pode continuar nossa história à prova de déficit de atenção e continuar com a ação! Não, você precisa sentir o vazio. Você precisa sentir a dor. E isso torna real, porque só a dor é real. E a nossa treta é mais pesada. Nosso deserto tá mais pra Saara do que Arizona. E minha vida tá mais pra um filme do Aïnouz. A dor é real. Nessa o Café fez beat, produção, mix e master, e eu acrescentei esses gritos, de um sample que eu tinha guardado a muito tempo esperando uma oportunidade pra usar, e encaixou perfeitamente.
9 - Laje das Ilusões
Aqui o renascimento das ilusões, outra vez. É como um apanhado geral de imagens dos três volumes do RPA, em velocidade ultra-rápida, como as imagens de uma vida na mente de alguém passando por uma EQM. É sobre essa sede de vida, e essa sensação de estarmos sempre muito aquém das nossas possibilidades como seres humanos, ao mesmo tempo em que lutamos contra a natural decadência de todas as coisas e contra todos os limites que nos são impostos como muros por todos os lados, em um labirinto infinito, carregando involuntariamente uma bagagem de tudo que já foi definido pra nós desde o nascimento por um mundo fudidamente injusto, e mais todos os nossos erros e acertos do caminho. E a gente vai driblando tudo isso, e criando nossos fantasmas pra ajudar com o peso da bagagem, e seguindo em frente, até o ponto em que a gente não sabe mais diferenciar a realidade das nossas obsessões e delírios, nessa não aceitação da nossa mortalidade, nessa busca pelo potencial potencial, pela parte que a gente não alcançou ainda, e que promete sempre ser a peça que faltava do quebra-cabeças, mas que apenas revela aspirações ainda maiores e aparentemente inalcançáveis. É aquele momento em que você olha pra trás e observa o quanto cê já andou, e quando olha pra frente de novo tudo que cê desejaria de uma lâmpada mágica seria manipular o tempo, ou transcender a noção de tempo e espaço. O beat é do Leo Justi, moleque bom que tem um som original. Mesmo não sendo um beat de funk carioca, que é a escola dele, tem uma assinatura aí na forma como ele mistura samples étnicos e timbres de bateria de hip-hop atual e funk carioca old school mais pro miami.