BaianaSystem – "O Futuro Não Demora"
© Filipe Cartaxo
Música

Faixa a Faixa: BaianaSystem – "O Futuro Não Demora"

Em seu terceiro álbum de estúdio, a banda nos conduz por histórias e destinos da Bahia; leia com exclusividade como foi o processo criativo de cada uma das 13 faixas do disco
Escrito por Evandro Pimentel
14 min de leituraPublicado em
No ano em que celebra seu décimo aniversário, o BaianaSystem nos entrega um disco que pode ser considerado um roteiro de viagem pela criação do ser humano, com paradas em destinos baianos. "O Futuro Não Demora", terceiro álbum da carreira da banda, chegou aos nossos ouvidos na última sexta-feira (15) como resultado de um ano de pesquisas intensas na Ilha de Itaparica, em Salvador e no mar que os separa. "Foi um ano sem pausas, um ano atravessando o mar todo dia, conversando com as pessoas da Ilha e de Salvador", relata Russo Passapusso, um dos fundadores do grupo. "Nos quatro primeiros meses, não se fazia música tocando, cantando ou escrevendo, mas só conversando."
A ponte com a Ilha de Itaparica se deu por meio do grupo Maré de Março, movimento socioambiental formado por jovens que vivem no local. "Entender a Ilha é ter uma visão clara dos acontecimentos sociais, dos acontecimentos que influenciam essa grande diversidade que a gente tem no Brasil", diz Russo. Diversidade essa que permeia todo o disco, que conta mais uma vez com a produção de Daniel Ganjaman e co-produção do próprio grupo, assim como aconteceu com o premiado “Duas Cidades”, de 2016.
Capa do álbum "O Futuro Não Demora", do BaianaSystem

Capa do álbum "O Futuro Não Demora", do BaianaSystem

© Filipe Cartaxo e Filipe Bezerra

"O Futuro Não Demora" é um disco com muitas participações e colaborações em todos os níveis, e traz uma narrativa que nos leva por um fio condutor com início, meio e fim. A primeira faixa chama-se “Água”. A última, “Fogo”. E temos a “Melô do Centro da Terra”, canção que marca o meio da história, dividindo o disco em lado A e B, Água e Fogo, representando elementos vitais para o entendimento dessa obra e suas ramificações. "A ordem em que as músicas se apresentam é muito importante porque é isso que torna possível essa condução pelos ambientes nos quais construímos o álbum", explica Russo.
O disco mostra também um trabalho muito forte de arranjos e concepção de percussão por parte de Ícaro Sá e Japa System. Ícaro, que vem do Pelourinho e tocou muitos anos com Ramiro Musotto, Orkestra Rumpilezz, Arto Lindsay e muitos outros artistas, é colaborador constante do BaianaSystem em palcos e gravações, e Japa System tem um trabalho de pesquisa muito forte com a percussão eletrônica e sua fusão orgânica com a percussão afro-baiana, além de ser integrante do grupo há muito tempo.
"Essas participações não são apenas participações porque essas pessoas são como se fossem de uma mesma família, pessoas que conseguem ser BaianaSystem", esclarece Russo. "Elas são BaianaSystem e têm a propriedade de mudar coisas dentro da música, de produzir, de guiar. São pessoas que têm a mesma importância que a gente no processo de criação do álbum. Nesse disco, a participação não chegou, ela já estava dentro." O disco também traz faixas produzidas por parceiros de longa data como Dudu Marote e o DJ, produtor e compositor João Meirelles, músico integrante do grupo desde 2012.
Convidamos Russo Passapusso para nos explicar o processo criativo de cada uma das faixas de "O Futuro Não Demora". Dê o play e leia abaixo.

1 – Água

A faixa de abertura conta com participação e co-autoria da dupla Antônio Carlos e Jocafi, ícones da música popular brasileira responsáveis por inúmeros sucessos na década de 70. "Essa canção foi escolhida para abrir o disco porque fala da gênese, do começo de tudo. Como já aconteceu muitas vezes com o BaianaSystem, "Água" era uma canção que a gente só ouvia instrumental e as letras foram chegando depois naturalmente dentro de ensaios. Tem também muitas memórias nossas dos carnavais de rua que a gente fez em Salvador e em São Paulo. É uma música que me emociona muito porque ela abre o disco trazendo a experiência da gente na Ilha de Itaparica: o BaianaSystem sai do ambiente do disco anterior, o "Duas Cidades", que fala mais sobre um contexto urbano, das relações do samba-reggae e tal, e traz esse ijexá maravilhoso."
A faixa – juntamente com "Fogo", que encerra o disco – remete ao início do trabalho de criação e composição de uma sinfonia que começou a ser escrita juntamente com maestro Ubiratan Marques, regente da Orquestra Afrosinfônica, e que tem grande participação no disco, compondo, tocando e fazendo arranjos. Ambas as faixas originalmente possuem pouco mais de sete minutos, dos quais apenas uma parte é apresentada no disco "O Futuro Não Demora".

2 – Bola de Cristal

A influência de Gerônimo nas composições do BaianaSystem aparece nessa faixa na figura de Seko Bass, baixista da banda e primo do cantor e compositor baiano. "A gente tem em Gerônimo não só uma grande referência, mas um grande guia em relação aos nossos sentimentos, de como a gente transpassa a música da Bahia, que mergulha na gente e que sai da gente de forma tão inerente." Enquanto "Água" traz no título e na letra o elemento essencial para o começo da vida, "Bola de Cristal" já aponta para o surgimento do ser humano. "Num ponto futuro o doce e o sal vão se misturar", diz a letra, evidenciando a constituição de nossos corpos, hoje tão absortos em uma tecnologia que nos guia para um futuro incerto. "A música é um suspiro, principalmente nos dias de hoje com essa imediaticidade toda. É o querer respirar e entender que o futuro está dentro de nossas ações presentes. Depois de um passado celular em "Água", "Bola de Cristal" apresenta essa mensagem muito carregada do surgimento do homem e traz algo mais moldado pela filosofia, pelo momento em que o homem toma consciência dentro desse ambiente."

3 - Salve

Enquanto "Água" fala sobre a constituição celular primordial e "Bola de Cristal" sobre a constituição do homem, "Salve" traz o elemento da espiritualidade para a história. "A gente queria olhar para dentro, para que a catarse não fosse somente externa e tivesse um olhar espiritual, um olhar ancestral. "Salve" é um ijexá com toques eletrônicos e que apresenta uma estrutura mais desacelerada e orgânica, permitindo a união de elementos diversos. "É uma música que eu considero que tem três músicas dentro dela, que fazem uma simbiose e se apresentam como uma força só. A faixa tem grande importância nesse disco também porque cita quatro referências fortes que intuitivamente estavam sempre nos protegendo: Nação Zumbi, Zulu Nation, Orkestra Rumpilezz e Ilê Aiyê."

4 – Sulamericano

Com forte carga política e clara ligação com a música latina e da América Central, a viagem segue com “Sulamericano”, que tem a participação de Manu Chao. Manu traz para faixa a figura do “Señor Matanza” personagem já presente em outras músicas suas, e nos banha com suas imagens e ideias de uma real América Latina. "Se "Água" é célula, se "Bola de Cristal" é o homem, com todas suas desconstruções de consciência, e se "Salve" é a espiritualidade que o homem descobre dentro de si mesmo, "Sulamericano" já vem falar de território. É uma faixa que apresenta uma reafirmação de resistência política e que acrescenta à narrativa do disco a cidade de Feira de Santana, localizada próxima a Salvador. É um local com comércio muito forte e que, por isso, possui muitas estradas, que percorrem e ligam o Brasil todo como as veias de um corpo."

5 – Sonar

Com participação dos paulistas Curumin e Edgar, a faixa “Sonar” chega com ares de rocksteady e dancehall jamaicano. "Essa faixa é mais orgânica, com muita influência do funk e sem beats eletrônicos. Para mim, ela representa a travessia da Ilha de Itaparica para Salvador. Depois de falarmos de território em "Sulamericano", agora é como se a pessoa pegasse um barco e saísse desse monte de terra – que as pessoas lutam para ter, lutam para explorar, lutam para tudo – e fosse para o meio do mar dentro de um barco e, com o sonar, começasse a querer descobrir o fundo do mar, para entender a água lá do começo do disco, da qual todos somos feitos. O canto de Curumin dentro dessa música é sublime, falando de estrelas e de como nos guiamos por esses reflexos de coisas que não existem mais, enquanto Edgar estabelece a comunicação com o fundo do mar, com o centro da Terra."

6 – Melô do Centro da Terra

Aqui aparece a figura mítica de Mestre Lourimbau, cantor, compositor e artesão de Salvador que vem entoando uma espécie de mantra na faixa, um diálogo de berimbau e guitarra baiana composta originalmente para trilha sonora do filme “Trampolim do Forte”, rodado em Salvador há 10 anos. "Eu enxergo essa música, que marca o meio do disco e o final do lado água, como um mantra guiado pelo berimbau de Lourimbau. Já estamos no meio da travessia, saindo da Ilha de Itaparica e indo para Salvador. Estamos ali no meio para entender esse conjunto de ilhas com as quais os portugueses tiveram contato quando chegaram por aqui e para compreender a história de resistência de cada uma dessas ilhas e seu papel na construção inicial da identidade do ser brasileiro na história."

7 – Navio

A partir daí, pegamos um navio e começamos a atravessar o Atlântico em direção ao "Fogo" (última faixa do álbum), num lamento vindo de Angola e com o peso dos tambores do samba-reggae. "Em "Navio", a gente realizou um sonho de dez anos do BaianaSystem de ter percussão no samba-reggae como se fazia antigamente, com todos os músicos gravando a percussão juntos, e não em canais separados como atualmente se faz." A faixa tem participação de Mestre Jackson, uma lenda da percussão na Bahia, que regeu a gravação da maneira clássica dos blocos afro, com um time de 10 percussionistas gravando ao vivo. Por meio de movimentos marítimos, a canção nos leva até a Inglaterra para nos juntarmos a Adrian Sherwood, clássico produtor inglês de dub com grande ligação com artistas jamaicanos, em uma faixa samba-reggae dub que estabelece nosso elo histórico com o velho continente e evidencia a falta de valorização de nossas riquezas.

8 – Redoma

O navio então se desdobra em um pequeno barco, que faz a ligação com o Recôncavo Baiano e com o sertão mais distante, e vai buscar o Samba de Lata de Tijuaçu numa comunidade quilombola de Senhor do Bonfim, construindo um som orgânico que funde beats eletrônicos e synths produzidos por João Meirelles. "Volta o barquinho de novo, ou seja, sai de Londres e daquele navio que representava a diáspora e chega na Bahia. É uma faixa que teve uma construção muito intuitiva durante as gravações. E foi durante as gravações que eu descobri que Tijuaçu fica em Senhor do Bonfim, terra que morei minha vida inteira. Naquele momento, eu olhei para as mulheres do Samba de Lata de Tijuaçu e me vi em cada traço delas, na mão, no formato do rosto, na explosão, na voz. Em "Redoma" também oferecemos máximo respeito ao Mestre Bule Bule, que nos ajuda a entender que a música baiana não é feita somente em Salvador e que na Bahia existem regiões que não têm água, que enfrentam a seca. Essa relação hardcore do Recôncavo Baiano com o sertão aparece também na força do canto do Samba de Lata de Tijuaçu e na guitarra baiana de Roberto Barreto."

9 – Saci

Em "Saci" estamos de volta à Salvador. "Nessa faixa, o eletrônico se dissolve no orgânico em uma harmonia maravilhosa que para muitos pode soar erudita. Mas, para nós, o erudito e o popular estão dentro da mesma estrutura. A música fala do Saci-Pererê, nego fodido, exu, personagem das matas que teve a perna cortada por ter fugido e continuou fugindo mesmo assim, pulando em uma perna só. Fala também sobre a descaracterização de um personagem do Pelourinho chamado "sacizeiro", que é quem fuma crack, e do termo "saci", que quer dizer "medo". É uma faixa que tenta preservar a figura cultural do Saci como força de resistência, como força ancestral, como força espiritual e que tenta estabelecer o Saci-Pererê como um guerreiro, afastando esse entendimento pejorativo." Ao final da canção, os riffs de "Saci" fundem-se com a música "Sambaqui", próxima faixa do disco.

10 – Sambaqui

Existem poucas representações gráficas ou monumentos que representem a cultura dos habitantes originais do Brasil. Por aqui, ao contrário de povos antigos de outros países da América Latina, os índios tinham formas muito particulares de se expressar. "Uma delas era o sambaqui, montanhas de conchas, ossos de índios falecidos e outros detritos que eram colocados em frente ao mar porque os índios entendiam que todas aquelas formações concretas eram coisas enérgicas. E sambaqui é a mais pura antropofagia, pois esses monumentos viraram o cal que os portugueses acabaram usando para suas construções. A música tem uma levada afro muito forte e nela nada do que a gente fala sobre o passado é realmente o passado. Quando a letra diz "comendo com a boca, comendo com o olho", pode ser o próprio celular, que as pessoas ficam olhando e comendo aquela informação, eu posso falar que é o fast-food, eu posso falar que é a própria antropofagia do índio, que é uma antropofagia sem comer carne… Essa canção tem uma grande explosão de interpretações."

11 – Arapuca

"Essa música é o maior experimentalismo que a gente conseguiu fazer juntando a ideia de música urbana, de pagode baiano e uma informação mais atualizada do que seria o pensamento de resistência política atual." A canção não possui refrão e é colocada no álbum como um som para ser contemplado. "Acho que o público acaba se aproximando da gente justamente porque se sente ridículo quando fulano vem dando um beabá de como absorver a arte, com parâmetros de repetições feitos para grudar na cabeça." "Arapuca" é um groove arrastado com letra no grimme. "Me identifico muito com esse canto falado mais londrino porque eu venho de um celeiro de samba-reggae. Muitos jamaicanos foram para Londres e influenciaram profundamente a música de lá. Londres cultua o reggae jamaicano, mas, como muitos outros lugares, não coloca a grandiosidade da Jamaica na frente da história."

12 – CertoPeloCertoh

Imagens de armadilhas, helicópteros, carros, sacis urbanos, antropofagias e todo esse caldeirão da cidade chegam com força nessa faixa, um relato direto e certeiro do rapper Vandal, cronista das ruas e quebradas de Salvador. "A letra fala de justiça, do certo pelo certo, de um ponto de vista que ninguém ali do Baiana teria capacidade de passar. Tivemos essa benção de ter ali falando quem realmente viveu." Essa ideia de experiência como forma de validação do discurso está presente no disco todo. "Hoje é muito fácil acessar cultura pelo celular sem precisar ter experiência nenhuma. O longo prazo virou morte." A faixa também traz a desconstrução e vitalidade das guitarras de Junix 11, produtor, compositor e colaborador do BaianaSystem há muitos anos. "Essa é a penúltima música do disco e, depois de passarmos pela Ilha de Itaparica, pelo Recôncavo, por Londres e tudo mais, estamos nas favelas de Salvador, lugar do certo pelo certo. Essa música funde toda a história em um samba-reggae antes do final."

13 – Fogo

O disco se encerra com participação do maestro Ubiratan e a Orquestra Afrosinfônica mais uma vez. Aqui, os versos “já aconteceu com você, aconteceu comigo”, da faixa "Salve" se repetem, ajudando a fechar a obra, que volta para o início ganhando um sentido de continuidade, de ciclo. "Eu repito a letra para mostrar que o álbum, mesmo seguindo uma ordem, é atemporal. Tem um detalhe pequeno que as pessoas podem não perceber, mas elas vão sentir: eu não falo "aconteceu com você", eu falo "já aconteceu com você", olha tudo isso que eu já te contei. E assim eu descaracterizo o espaço-tempo, tornando tudo atemporal. O presente já é o futuro, porque está se transformando muito rápido e a gente sabe que é um segundo para tudo mudar. Não dá pra adivinhar esse futuro, e a gente tem que conduzir o presente com o acúmulo das coisas que a gente aprende do passado. O futuro não demora."
BaianaSystem – "O Futuro Não Demora"

BaianaSystem – "O Futuro Não Demora"

© Filipe Cartaxo